Cheguei no espaço Chão no sábado pra dar uma olhadinha nos preparativos da exposição performance de amiga Tathy Yazigi. Ela veio de Sampa passar dois meses na ilha e está causando confusão na cabeça do povo daqui.
Cheguei no local da performance e ela estava totalmente à vontade, digo muito livre, com os seios à mostra, uma calça de malha e tênis, organizando os preparativos de sua performance.
Nessa passagem pelo Maranhão está dirigindo a peça de Josué Redentor e foi convidada a expor seus trabalhos na galeria de arte “Espaço Chão”, que agora está na Rua do Giz. Quando vi aquela cena fiquei intrigada, um calor da porra e Tathy ali no meio de todos na maior naturalidade, mexendo de um lado pro outro, varrendo e lavando o chão, criando todo o cenário para seu trabalho, gostei do que vi. Naquele momento comecei a imaginar a força do trabalho da atriz paulista que hoje viaja pelo mundo estudando e fazendo arte.
Numa mesa ele colocava elementos como sal, vela, cerveja, leite, ervas. Aromatizou o local com água de flores e incensos. Parecia mais um grande ritual de feitiçaria o que de fato era! Ela começa o trabalho três dias antes com a fermentação de um pão que leva três dias até ir ao forno. Processo pelo qual ela se apaixonou, e leva pra todos os cantos onde vai, se diz apaixonada pela magia da fermentação e transformação de elementos.
Tudo parece um grade ritual de purificação que vai trazendo a energia necessária para a atmosfera do trabalho. Aos pouco vai ganhando vida a partir das mãos da própria atriz que desenvolve todo o processo ali a olhos vistos. O tempo todo ela passa uma sensação tão grande de intimidade que nos faz sentir parte de tudo aquilo.
O público vai chegando gradativamente e ela já está lá, interagindo naturalmente com o ambiente, manipulando os elementos, dançando. E tudo vai sendo criado de acordo com o momento. Foi a primeira vez que ela apresentou este trabalho. A gente fica meio sem saber se começou, pela naturalidade com que ela está no espaço. O figurino parece um macacão de operário de obra. Ela começa a jogar sal grosso nos cantos da sala, passa urucum no corpo e banha a cabeça com uma jarra de leite como num processo de purificação, limpeza. Depois começa a falar de seu trabalho naturalmente e do que a levou até aquele lugar. Diz que a vida é uma verdadeira alquimia e que devemos dar tempo para que os elementos se transformem em outra coisa, assim como tudo no universo.
Fala também de sua experiência com a fermentação natural e manipulação de chás. Logo após ela distribui o pão que fez para que cada um retire um pedaço, e, assim todos vão comendo e vivendo o prazer de degustar o alimento sagrado, como nos tempos de Jesus Cristo. A partir dali é como se Tathy também comungasse com todos as suas ideias.
Naquele momento ela diz que “a nossa presença é um ingrediente da alquimia da realidade”. Começa a dialogar sobre o papel do artista e da arte contemporânea, que todos podem usar essa ferramenta de forma democrática, como arma para expandir lugares de privilégios trabalhando o outro da perspectiva de que “o outro não sou eu”. Para ela o corpo não termina nos limites de nossa pele.
Depois de se apresentar faz a mostra de três curtas metragens em que ela atua, os três são bem abstratos e retratam mulheres e suas relações com os cabelos, cabelos estes que não são simples “adereços” e, sim, parte da personalidade de cada uma, representando força, paixão e vivências múltiplas. Principalmente da relação mulher com o cabelo e seus sentimentos de alegria, tristeza, mudança, subversão e enfrentamento.
Nos vídeos a atriz não dá uma palavra, demonstrando o quanto o silêncio fala, além da grandiosidade do trabalho da atriz. Depois abre-se um grande diálogo sobre a relação do público com os seus próprios cabelos e várias histórias interessantes aparecem. Inclusive a minha, que há oito meses passei por um processo de desilusão e cortei todo o cabelo, me sentindo mais forte e viva, sem aquele “adereço” que chamava tanta atenção pela sua beleza, foi como negar a beleza daquele que carregava toda a minha personalidade.
Depois de ouvir todas as histórias ela corta uma mecha do seu próprio cabelo e pergunta se alguém do público que doar uma também, logo várias pessoas vão doando pedaços de seus códigos genéticos, que ela guarda em uma linda caixa e diz que vai jogar ao mar.
No entanto um fato no mínimo curioso acontece um casal que ali estava diz que tinha o desejo de cortar os cabelos juntos e numa rápida conversa com Tathy se predispõem a cortar os cabelos ali em nossa frente. Foi um lindo ato público de desprendimento e amor. Ali fica a questão de como ter tanto desapego com aquilo que cresce com o tempo, mas que guarda nossas experiências? Se paramos pra pensar o cabelo guarda memórias e pode nos fazer reconstruir uma nova “repradronização de um hábito”, foi uma prova da representação do papel político do cabelo.
Pra finalizar Tathy Yazigi fala que aquilo tudo foi uma declaração de amor ao público e coloca sua música favorita, que seu pai a apresentara, fazendo uma dança com base em um estudo chamado “movimento autêntico” em que deixa o corpo bailar pelo espaço de forma natural e sem padronização alguma. Ela, que é bailarina desde criança, disse que estava há algum tempo sem dançar, isso desde a morte do seu avô, que amava admirar suas danças. Ali ela homenageia tanto ele como todos os seus ancestrais masculinos, numa dança que tinha uma força totalmente “yang” mostrando o lado masculino que também habita em nós mulheres.
Tudo isso sem falar na exposição “Meu Nome Não é Linda” que estava ali na parede, uma sequência de várias bocas vermelhas, que hora eram bocas carnudas e belas, da própria atriz, que iam se transformando em xiris pintados de batom vermelho, fumantes, com flores, sangrando. Se transformando em bocas novamente que riam de suas felicidades e mazelas.
Um grito contra o machismo e a violência que nós mulheres sofremos durante toda a história da patriarcado. Não vou falar mais, pois já dei muito spoiler e tudo que Tathy Yazigi apresentou foi um ato político de luta pelos direitos das mulheres. A arte de Tathy é muito sensível e nos deixa com milhões de questionamentos sobre a condição feminina e de tudo que nos foi privado por todos esses anos.
O bom é que existem pessoas como ela que através da democratização da arte nos levam a esses encontros com nós mesmas. Novamente um enorme sentimento de gratidão por existir e poder presenciar o trabalho de uma artista tão singular e questionadora como ela.
A exposição “Meu Nome Não é Linda” a artista deixa como um presente pra São Luís, lá no espaço Chão. Não percam a oportunidade de prestigiar!