Cem anos depois de ser a música mais cantada no Carnaval de 1917, “Pelo Telefone”, considerada por historiadores como o marco zero do samba, ganha nova releitura pelas mãos de Leandro Lehart, fundador do Art Popular, e percussão do Molejo, um dos mais populares grupos de pagode de geração 90.

A gravação foi realizada em dezembro passado, no estúdio de Lehart, que aceitou o convite do UOL para atualizar a canção de Donga. Os versos escritos pelos jornalistas Babu Baía e Diego Assis trocam o “telephone”, novidade na época, quando ainda se usava o ph no lugar do f, pela ferramenta de comunicação de hoje, o aparelho celular com WhatsApp (ou Zap-Zap, como é mais conhecido o aplicativo, na boca do povo).
– Acho que o samba precisa sair dessa coisa do discurso tradicional, de resistência, que os mais antigos pregam, e voltar a ser interessante para os mais jovens. A gente tem que usar novas tecnologias, entender que as pessoas hoje têm outro nível de informação, que as músicas estão mais rápidas, que o discurso é diferente e que o papo é outro”, sugere Lehart, que toca violão, canta e também contribuiu com versos na releitura.
Composto e registrado como “samba carnavalesco” na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, por Donga e Mauro de Almeida, em novembro de 1916, “Pelo Telefone” foi não só o primeiro samba a fazer sucesso comercial mas também o primeiro a causar polêmica. Na sua origem, estaria uma provocação à polícia da capital que, naquele tempo, reprimia o samba e outras manifestações da cultura afrobrasileira, ao mesmo tempo que fazia vista grossa para a jogatina que rolava solta nos cassinos da alta sociedade.
Enquanto o povo cantava nas ruas os versos “O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar”, em sua primeira gravação oficial, interpretada pelo cantor Baiano, a canção ganhava uma versão alternativa – e disfarçada – que dizia “O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar”. Depois de consagrado, no entanto, o próprio Donga costumava apresentar o samba com sua letra original e sem censura.
Outra polêmica que acompanha a história de “Pelo Telefone” diz respeito à sua autoria e mesmo à sua primazia como o primeiro de todos os sambas. Em entrevistas, Donga mesmo chegou a reconhecer que a música surgiu coletivamente em noitadas na casa de Tia Ciata, frequentada por bambas da época como Sinhô, Pixinguinha e João da Baiana. Alguns deles chegaram a escrever cartas em jornais negando que Donga fosse o autor do samba.
– Existiram outras músicas muito importantes na época, mas a gente precisa entender ‘Pelo Telefone’ como um divisor de águas, como um momento importante da música e da cultura brasileira – defende Lehart. “A original tem uma inocência, um discurso bastante da época, e foi uma grande descoberta como o começo de um samba que sofreu várias metamorfoses durante décadas. ‘Pelo Telefone’ é um símbolo dos mais importantes que a gente tem, um tesouro muito importante da cultura brasileira, que deveria ser, inclusive, objeto de pesquisa no ensino fundamental.”
Com essa homenagem, Lehart espera não só apresentar a música às novíssimas gerações como despertar a paixão pelo samba, hoje em segundo plano se comparado a outros ritmos nacionais como o sertanejo e o funk.
– Sinceramente, acho que o Brasil não conhece bem essa faixa. Nesses últimos cem anos, falta muito a entender sobre o que o samba significa, principalmente agora que os jovens estão ouvindo outro tipo de música. Isso me assusta um pouco, porque passamos uma fase espetacular nos anos 90 e hoje os nossos filhos não estão se interessando mais pelo samba. O Brasil ainda vai descobrir que existem novos jeitos de fazer samba, sem perder sua essência, para que nossos filhos, netos e bisnetos ainda possam entender a brasilidade que a gente tem. –
Veja a seguir, a letra completa da paródia/homenagem a “Pelo Telefone”:
“Pelo Zap-Zap”
(Babu Baía, Diego Assis, Leandro Lehart sobre Donga e Mauro de Almeida)
O chefe da folia
Pelo Zap-Zap
Mandou avisar
Que com alegria
Na roda de samba
Vai comemorar
Ai, ai, ai
Deixa as mágoas para trás, ó rapaz
Ai, ai, ai
Que este samba chega aos cem carnavais
Tomara que tu aprendas
A nunca mais dizer isso
Que meu samba é feitiço
Vai causar um rebuliço
Olha a rodinha, Sinhô Sinhô
Que se formou, Sinhô Sinhô
Ao som de Donga, Sinhô Sinhô
E do nosso amor, Sinhô Sinhô
Porque este samba, Sinhô, Sinhô
Que vou recordar, Sinhô, Sinhô
Entrou pra história, Sinhô, Sinhô
Nos fez sambar, Sinhô, Sinhô
O Peru me disse
Se o Morcego visse
Não fazer tolice
Que eu então saísse
Dessa esquisitice
Do disse-não-disse
Ai, ai, ai
Deixa as mágoas para trás, ó rapaz
Ai, ai, ai
Que este samba chega aos cem carnavais